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Biografia de Manuela Tavares

“Alguém perguntou-me, há algum tempo, como eu gostaria de ser recordada. Respondi simplesmente: numa fotografia ao lado da minha filha e com muitas umaristas à volta.”(1)

– Manuela Tavares

Maria Manuela Paiva Fernandes Tavares nasceu a 2 de julho de 1950, em Lisboa. Proveniente de uma família com poucos rendimentos, foi continuamente incentivada pelo pai a prosseguir os seus estudos. O seu pai, que apenas havia concluído a quarta classe, era o sustentáculo económico e financeiro da família, não permitindo que a sua mulher trabalhasse fora de casa.

Ainda jovem, Manuela Tavares traçara o seu percurso escolar na área da economia, ingressando no Curso Comercial na Escola Emídio Navarro, em Almada. Para os seus pais, este caminho oferecer-lhe-ia oportunidades de emprego mais amplas, assegurando-lhe uma vida distinta da dos progenitores. Manuela colocaria então de lado a sua paixão pela História, à qual apenas regressaria anos mais tarde, dando continuidade aos seus estudos no âmbito da economia. O seu excelente desempenho escolar e a contínua atribuição de bolsas garantiram a sua entrada no ISEF, Instituto Superior de Economia e Finanças, atual ISEG, em Lisboa. De 1969 a 1974, período marcado por fortes movimentações e contestações estudantis, Manuela Tavares frequentaria a Licenciatura em Economia. Note-se que, na altura, o Ensino Superior era restrito quase exclusivamente a uma elite económica e social, tendência que apenas se alteraria nos anos posteriores à revolução do 25 de abril.

Numa entrevista concedida em julho de 2020, M. Tavares destaca a importância deste ambiente estudantil para a sua consciencialização política e social, “Para mim foi muito importante esse convívio e relacionamento que tive na universidade para o evoluir das minhas ideias”. A universidade possibilitara ainda o contacto com alguns textos proibidos publicados pela Associação Académica, nomeadamente certas obras de Karl Marx, como O Capital. Manuela Tavares confessa que na esperança vã de esconder da PIDE os poucos livros proibidos que possuía, guardava-os debaixo do maple. Esta recorda “Se a PIDE fosse a minha casa era lógico que iria rebuscar aquilo, mas eu achava que era um bom esconderijo para os livros considerados proibidos.”.

Na universidade conhecera ainda o seu companheiro de vida, António, também estudante de Economia na mesma faculdade. Em 1970, um ano após terem começado o namoro, Manuela e António casam-se. A nível familiar, estes foram momentos de grande mágoa e sofrimento, sobretudo após ter sido diagnosticado um carcinoma no intestino do seu pai, patologia que o deixaria debilitado e com uma esperança de vida limitada.

No ano de 1972, Manuela Tavares fica grávida com a sua primeira e única filha, Paula. Este ano, tal como os precedentes, foi marcado por intensas agitações estudantis, com suspensões e irregularidades no período de aulas. Em maio, o Instituto Superior de Economia é invadido pela polícia de choque e em outubro durante um “Meeting contra a repressão” a PIDE invade a Faculdade e é morto o estudante Ribeiro dos Santos. Manuela Tavares, grávida na altura, relembra a entrada dos agentes da PIDE na Universidade, acompanhados pela polícia de choque, “Se não me tivesse recolhido quando vi a polícia de choque vir com os cães polícias por ali fora, (…) eu teria levado! Eles não viam se uma pessoa estava grávida. (…) Eles entraram e aquilo foi um horror. Nem quem se refugiou no gabinete do diretor deixou de levar pancada porque a polícia invadiu tudo”.

A sua filha Paula nasceu a 3 de novembro de 1972. Dias após o parto, Manuela persevera e decide prosseguir com os estudos, terminando os exames finais do terceiro ano. Recordando estes tempos, Manuela frisa o apoio constante do seu marido e a importância do mesmo para a continuidade dos estudos, enquanto reflete acerca da mentalidade da época, “Foi muito importante esse apoio, desde dar o banho à menina a estender as fraldas dela. (…) As vizinhas diziam à minha sogra ‘Ah, vi o seu filho a estender as fraldas e roupas na varanda!’”. Após terminar o curso, Manuela Tavares profissionalizou-se como professora, seguindo a sua paixão pelo ensino e didática. De 1974 a 2008 foi professora do ensino secundário na Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, em Almada, lecionando as disciplinas de economia e sociologia. Não se cingindo apenas aos programas curriculares, M. Tavares procurava transmitir ideias de cidadania aos seus alunos. Por seu turno, o seu marido fora contratado para o Banco do Fomento, mais tarde BPI. Com um rendimento familiar maior, Manuela e o seu marido desfrutavam de um estilo de vida distinto do dos seus pais, com uma maior capacidade económica e financeira.

O despertar mais atento de Manuela Tavares para a atividade política viria a acontecer no período pós 25 de abril. Ainda que o ambiente universitário tenha possibilitado o seu contacto com muitas ideias e fomentado a sua participação nas lutas estudantis, estas eram sobretudo contra o regime, sem que se contemplassem verdadeiramente as questões de género.

Nos meses posteriores ao 25 de abril, marcados por uma generalizada e efervescente agitação popular, Manuela Tavares assume uma posição política mais ativa. No Pragal, freguesia onde residia, tinha-se formado uma “comissão de moradores”. Na senda das ocupações de casas vazias que se iniciaram no Bairro Social de Chelas a 8 de maio de 1974, a “comissão de moradores” do Pragal ocupa um palacete de um antigo coronel do exército. Muitas mulheres, incluindo a própria Manuela Tavares, decidiram juntar-se e autonomizar-se da “comissão de moradores”, criando uma “comissão das mulheres” que se encarregou da conversão do palacete abandonado na Creche Popular do Pragal, ainda hoje existente.

Acompanhando estas movimentações de mulheres para a reorganização dos espaços coletivos, Manuela Tavares compreende paulatinamente a existência de alguns obstáculos à afirmação das mulheres, não obstante o 25 de abril. Enquanto professora, disponibilizara-se para alfabetizar muitas mulheres que não sabiam ler ou que não tinham a 4ª classe, mas rapidamente apercebe-se das dificuldades sentidas pelas mulheres que queriam frequentar estas aulas de alfabetização à noite. M. Tavares revela que “(…) o 25 de abril tinha sido muito importante, mas as mulheres ainda não tinham a liberdade que deveriam ter em casa. A democracia em casa não existia.”. Tavares testemunhou ainda o silêncio a que muitas mulheres foram vetadas, frequentemente pelos próprios maridos, após a fusão da “comissão de mulheres” na “comissão de moradores”. Muitas mulheres começaram a perder o interesse nas reuniões e abandonaram a comissão, “Das quase vinte mulheres da “comissão de mulheres”, (…) ficámos apenas três na “comissão de moradores”.”.

Como tal, Manuela Tavares compreende a necessidade de um espaço singular dedicado às mulheres, onde estas pudessem discutir e afirmar-se sem qualquer constrangimento. A 12 de setembro de 1976, Tavares está presente num Encontro de Mulheres no Instituto Superior Técnico que marca a formação da UMAR, na altura União de Mulheres Antifascistas e Revolucionárias. Levando consigo algumas mulheres da “comissão de mulheres” do Pragal, M. Tavares foi estimulada por “um certo desejo de as organizar, de tomarem maior consciência de si como sujeitos políticos e de terem uma identidade como mulheres e como sujeitos com direitos.”.

Na UMAR, Manuela Tavares contacta com as mulheres das lutas populares e dos bairros sociais que ocuparam edifícios e fábricas. Através de aprendizagens empíricas, de contacto direto com os problemas e adversidades sentidas pelas mulheres no quotidiano, M. Tavares traça o seu percurso no feminismo. Note-se que as suas aprendizagens acompanham, em grande medida, a história da UMAR, que nasce como uma associação de mulheres pela luta dos seus direitos e não como uma associação feminista. Tal como a sua co-fundadora, a UMAR, numa primeira fase de existência, lutava pela criação de creches, pelo direito ao trabalho e à educação, todas estas reivindicações de cariz geral.

Dando continuidade às ligações estabelecidas com as mulheres do Pragal, M. Tavares dá os primeiros passos para a formação de uma cooperativa de costura “Mulheres em Luta”, incentivando as mulheres a trabalharem em conjunto na sede da UMAR em Cacilhas em vestimentas de criança. Todavia e não obstante os grandes esforços para o sucesso desta cooperativa, rapidamente as mulheres desanimaram face às baixas receitas obtidas.

Apenas nos finais dos anos 70, aquando da luta pela despenalização do aborto, é que a UMAR contacta com alguns grupos feministas, absorvendo as suas teorias e adotando uma posição assumidamente mais feminista. Manuela Tavares desempenhou um papel ativo nesta longa luta. Já em 1982 tinha estado presente na primeira manifestação nas galerias do parlamento, juntamente com outras companheiras, exibindo t-shirts com a frase “Nós abortámos”. Anos mais tarde, em 2003, publica ainda a obra Aborto e Contracepção em Portugal, dando a conhecer a história destes movimentos em Portugal através da voz das protagonistas. No ano seguinte, a 5 de maio 2004, no Seminário Evocativo do I Congresso Feminista e da Educação, do qual era membro da Comissão Organizadora e da Comissão Promotora, Manuela Tavares apresenta a sua comunicação “Rupturas e continuidades na luta pela legalização do aborto em Portugal”.

Do período de 1989 a 1996 é ainda Presidente da UMAR e sua representante em reuniões na Alemanha, Holanda, Bélgica e Galiza e de 1992 a 1996 é uma das representantes portuguesas no Lobby Europeu de Mulheres. Fez ainda parte da delegação portuguesa à Conferência de Pequim, em 1995.

Cada vez mais interessada pelas temáticas do feminismo, M. Tavares sentira necessidade de conhecer teoricamente as questões do feminismo com as quais vinha a trabalhar nas décadas anteriores. Assim, em 1995, seguindo a sua paixão pela História, candidatou-se ao Mestrado em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta, em Lisboa. A sua atividade política a nível internacional, nomeadamente no movimento da Marcha Mundial de Mulheres em Nova Iorque em 2000, contribuiu com ensinamentos fulcrais para os seus estudos académicos. Em 2005, decidiu dar continuidade à sua investigação académica, enveredando por um Doutoramento em Estudos sobre as Mulheres oferecido pela mesma Universidade, com a tese intitulada Feminismos na segunda metade do século XX em Portugal. Segundo Tavares, o seu regresso ao ambiente universitário foi motivado por “uma grande sede de conhecer as razões históricas e políticas de uma luta na qual eu vinha a participar desde os meus 26 anos”.

Em 2008 foi ainda membro da Comissão Promotora e da Comissão Organizadora do Congresso Feminista 2008, realizado em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, evocativo dos 80 anos do II Congresso Feminista e da Educação. Sublinhado a importância deste evento para a UMAR e para os feminismos em Portugal, Manuela Tavares afirma que “Existir um congresso feminista em Portugal 80 anos depois, quando (…) a palavra feminismo durante o Estado Novo foi praticamente suprimida e depois do 25 de abril foi uma palavra mal-amada, (…) foi de vital importância!”.

Em 2009, aposentada mais cedo da sua carreira como professora, M. Tavares sofre profundamente com a morte da sua única filha, bióloga, investigadora no IST e ativista ambientalista.

Em 2011, publica Feminismos, Percursos e Desafios (1947-2007), obra notável que procura explicar os percursos de meio século de história dos feminismos em Portugal, abordando a pluralidade destes movimentos e esclarecendo as suas fragilidades.

Os seus projetos mais recentes reafirmam a importância de um trabalho ininterrupto de consciencialização da comunidade e de debate dos feminismos. Por um lado, aquando da sua entrada como investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos do Género, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Manuela Tavares procurou que as suas companheiras da UMAR pudessem usufruir de um conhecimento mais aprofundado sobre os feminismos através de um curso de especialização na temática. Nesta senda, em 2019, Tavares dinamizou ainda um conjunto de formações internas na UMAR para companheiras, associadas e voluntárias em torno das questões da prostituição, das correntes do feminismo e dos feminismos na atualidade. Para Manuela Tavares o debate é fulcral, considerando que tem “procurado que a associação se atualize e não fique numa perspetiva do passado”.

Ampliando o seu espectro de atuação, M. Tavares tenciona que esta consciencialização social atinja os espaços mais remotos de Portugal. Enquanto presidente da Associação Fragas Aveloso, criada em 2013 em homenagem à sua filha, Manuela Tavares procura parceiras entre esta associação e a UMAR. A este respeito será de sublinhar o recente projeto GIESTA- Mulheres e Raparigas do Interior e do Meio Rural, Promover a Igualdade de Género, que procura consciencializar as mulheres do meio rural sobre as questões do feminismo, através de ações de formação sobre participação comunitária, direitos das mulheres e a história dos feminismos.

Atualmente, Manuela Tavares é investigadora integrada no Centro Interdisciplinar de Estudos do Género no ISCSP e coordenadora do Centro de Documentação e Arquivo Feminista Elina Guimarães, para além de membro da direção da UMAR.

Joana Ralão, agosto de 2020

(1) TAVARES, M., SALES. T. (coord.) (2016) – Construindo os feminismos, desafiando o futuro. Lisboa: UMAR- União de Mulheres Alternativa e Resposta, p. 139.

(2) TAVARES, M. (2010) – Feminismos, Percursos e Desafios (1947-2007). Alfragide: Texto, p. 240.

(3) Veja-se FERREIRA, J. M. (2001) – Portugal em Transe. In José Mattoso (dir.) História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, pp. 86-88.

(4) TAVARES, M. (2010) – Feminismos, Percursos e Desafios (1947-2007). Alfragide: Texto, pp. 255-257.

Nota: Todos os excertos utilizados no decorrer desta biografia, salve menção em contrário, foram retirados de um conjunto de entrevistas realizadas a Manuela Tavares em julho e agosto de 2020, disponíveis no acervo do Centro de Documentação e Arquivo Feminista Elina Guimarães/UMAR, em Lisboa.