Memórias das mulheres em tempos de ditaduras. Portugal 1926-1974
Natividade Monteiro
O Centro de Cultura e Intervenção Feminista da Umar levou a cabo em Outubro de 2012 um Ciclo de Tertúlias dedicado às Memórias das Mulheres sobre a clandestinidade, a guerra colonial e a oposição democrática ao Estado Novo, com o objectivo de dar visibilidade, reflectir, registar e debater o valor destes testemunhos como fontes orais importantes para a construção da narrativa histórica, visto contribuírem para ampliar a grelha de análise ao inserirem outras dimensões, perspectivas e olhares sobre os acontecimentos deste período histórico. Os testemunhos das vivências singulares oferecem elementos factuais inacessíveis a outras fontes tradicionais, como os documentos oficiais, e introduzem na narrativa histórica um outro factor do discurso e da acção humana, – a subjectividade -, arredada das preocupações da história estrutural, mas recuperada pela história das mulheres e do género. Citando Enzo Traverso, “História e memória nascem de uma mesma preocupação e partilham o mesmo objecto: a elaboração do passado.” Embora exista uma hierarquia entre as duas, “a história acaba, enfim, por fazer da memória um dos seus domínios de investigação, como prova a história contemporânea.”
(Enzo Traverso, O passado, modos de usar, Lisboa, Unipop, 2012, pp. 21-22) Estas tertúlias tiveram o mérito de resgatar do silêncio as “pequenas vozes” e de trazer à luz os “rostos invisíveis” de mulheres que viveram experiências únicas nos tempos da ditadura salazarista, como clandestinas em terra própria, como opositoras ao regime e por este declaradas inimigas do Estado ou participantes de uma guerra que, oficialmente, não existia.
Na primeira Tertúlia, Domícilia Costa e Manuela Juncal partilharam as suas memórias da vida clandestina nas décadas de 60 e 70. Domicília Costa, filha de operários comunistas, cresceu e viveu a juventude na clandestinidade, sempre em fuga, partindo depois para o exílio. Manuela Juncal, filha de opositores ao Estado Novo, optou pela clandestinidade a meio do curso de arquitectura. Foi operária da indústria têxtil, viveu privações impensáveis e sacrificou alguns dos melhores anos da juventude em nome de ideais partilhados por muitas e muitos jovens da sua geração. Domicilia tomou conhecimento de si própria já na clandestinidade, porque foi a opção de seus pais, o que terá condicionado ou determinado as suas próprias opções na juventude e idade adulta. Manuela tomou ela própria, conscientemente, essa opção.
A segunda e terceira tertúlia foram dedicadas às memórias das mulheres sobre a guerra colonial. Na década de 60 e início da década de 70, a guerra em África era a maior preocupação das portuguesas e portugueses. Nenhuma família passou incólume por esta longa e desgastante guerra de 13 anos. Os homens partiam, as mulheres ficavam, vivendo a saudade da separação a ansiedade das notícias, a angústia da separação e o medo da perda.
Mães, esposas, irmãs, noivas, amigas e parentes esperavam pelo regresso dos seus rapazes e pelo fim do pesadelo da guerra, escreviam carta e aerogramas, com palavras de alento, esperança e consolo. Algumas mães, esposas e noivas vestiam luto, isolavam-se, não conviviam, não se divertiam, morriam para as sociabilidades, enterravam-se vivas, umas por vontade própria, outras pela pressão social, pelo receio do olhar crítico dos outros. As madrinhas de guerra aceitavam escrever por dever patriótico, por amizade ou pelo espírito de aventura e promessa de romance.
Mas, nem todas as mulheres ficaram. Como outrora as cartaginesas, algumas mulheres portuguesas também foram à guerra. Algumas das mais instruídas seguiram os maridos, outras casaram por procuração e foram ao seu encontro, por amor, porque a guerra de África era dura mas era também uma oportunidade de viver o sonho da vida a dois, de satisfazer o espírito de aventura, da ânsia de liberdade, de poder trabalhar fora de casa, na docência ou nos serviços, pois em África havia muitos empregos para jovens com estudos.
Umas viveram a guerra na retaguarda, sem sobressaltos, pois as lutas desencadeavam-se longe das grandes cidades. Estas deslumbravam-se com a liberdade, a facilidade e a descontracção da vida africana mas pouco a pouco tomaram consciência do racismo implícito nas relações de desigualdade entre brancos e negros. Outras, ainda mais atentas, sabiam das grandes operações militares e das acções em que os maridos participavam e começavam a questionar os porquês da guerra, além de recearem as más notícias sempre que ouviam no ar o roncar dos helicópteros. Outras viajaram dias e dias com as colunas militares, até aos quartéis onde ficavam, por vezes clandestinas, se os responsáveis militares autorizassem, embora com a recomendação de não colocarem cortinas nas janelas para não denunciarem a sua presença. Algumas mais corajosas e aventureiras aceitaram ir ao encontro dos feridos e moribundos como enfermeiras pára-quedistas. Ainda outras, mais politizadas que, sendo contra a guerra e seus pressupostos, acompanharam os maridos, conspiraram, foram perseguidas, presas, interrogadas e torturadas. E, por fim, outras que, nascendo em África, perfilharam os ideais da autonomia dos povos africanos e se juntaram aos movimentos de libertação, fazendo parte da guerrilha.
Nestas tertúlias recordámos todas elas: médicas, enfermeiras, professoras, jornalistas, funcionárias do Estado, hospedeiras, empregadas do sector privado, domésticas, conspiradoras e guerrilheiras e ouvimos algumas delas contar as memórias das suas vivências. Foram momentos excepcionais de partilha que agradecemos às nossas convidadas: Diana Andringa, Helena Neves, Lídia Jorge, Susana Torrão, Giselda Pessoa e Rosa Serra.
E, a propósito de memórias, Agustina Bessa Luís que fez noventa anos por esses dias, escreveu há tempos que as Memórias procriam como se fossem pessoas vivas. Escreveu ela que:
“Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos onde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidas. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas.” (In Antes do Degelo)
As memórias partilhadas pelas mulheres que participaram neste Ciclo de Tertúlias são testemunhos de experiências individuais que destoam da memória oficial por terem sido ignorados ou subalternizados na construção do discurso histórico. Memórias não narradas é como se não existissem. Torna-se imperioso resgatá-las e inscrevê-las num registo da acção humana colectiva em que as representações construídas sobre o passado se aproximem o mais possível da multiplicidade de olhares, perspectivas e subjectividades de homens e mulheres.