Destacada feminista e «herdeira dos valores da primeira geração de feministas portuguesas, preservando-os durante a vigência do Estado Novo e avivando-os no período subsequente à revolução de Abril de 1974»1, Elina Júlia Chaves Pereira Guimarães (na foto, em primeiro plano) viveu diversas situações discriminatórias pelo facto de ser mulher, além de ter empunhado a bandeira da luta contra outras opressões, nomeadamente, durante a ditadura que dominou Portugal ao longo de quarenta e oito anos.
Essa revolta contra o sistema patriarcal levá-la-ia a cursar Direito e torná-la-ia, com Aurora de Castro e Cármen Marques, uma precursora do chamado feminismo jurídico que segundo Elina Guimarães se definia como: «Nome que afoitamente podemos dar àquela corrente doutrinária que impõe e preconiza a igualdade dos sexos perante a lei.»2
Recordando os tempos da Faculdade de Direito de Lisboa, onde havia ingressado em 1921 e se tinha licenciado, em 1926, com a classificação de 18 valores, Elina Guimarães, confidenciava: «O meu curso foi trabalhoso porque os professores feministas serviam-se de mim para exemplificar as suas teorias. Os outros procuravam fazer-me expiar a minha ousadia»3
Ainda na Faculdade, a sua «ousadia» viria a ser novamente alvo de uma investida provocatória por parte de um colega cuja ignorância o levava a afirmar que as mulheres eram menos inteligentes do que os homens. Indignada, Elina Guimarães desafiou-o para um «duelo» em forma de prova pública cujas testemunhas foram o reitor e alguns professores da Faculdade. O resultado foi brilhante: Elina Guimarães obteve 18 valores e o colega machista ficou-se pelos dezasseis!
Tendo Adelaide Cabete sabido deste evento noticiado em A Capital 4, escreveu a Elina Guimarães convidando-a para fazer parte do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP). Esta organização feminista havia sido criada, em 1914, por Adelaide Cabete e tinha como associadas Aurora de Castro Gouveia, Maria Clara Correia Alves, Maria Lamas, Regina Quintanilha, Sara Beirão, entre muitas outras. Contudo, em 1947, em pleno Estado Novo, o CNMP viria a ser encerrado. Foi nestes termos que Elina Guimarães se referiu ao Conselho: «as feministas portuguesas não dispõem, como algumas estrangeiras, de instalações sumptuosas. Todos os seus bens terrestres se limitam a um cubículo, sem ar nem luz, sito na Praça dos Restauradores, 13, 2º. Em Portugal, o Conselho intervém, sempre que a mulher seja vítima de qualquer injustiça.»5 Elina Guimarães integrou muito cedo esta associação feminista onde teve sempre um papel activo. Foi Secretária-geral em 1927, Vice-Presidente da Direcção em 1928, 1929 e 1931 e Vice-Presidente da Assembleia Geral em 1946. Também foi responsável pela Secção Jurídica e pela Secção do Sufrágio.
Filha única de Alice Pereira Guimarães e de Vitorino Máximo de Carvalho Guimarães, formou-se para a vida sob a estimulante influência da avó materna e do pai que transmitiu à filha os valores da liberdade, da independência, do espírito crítico e da cidadania activa. Este, republicano convicto e amigo pessoal de Afonso Costa, desempenhou funções de elevada importância política na 1ª República, tendo sido posteriormente perseguido e deportado para os Açores e Cabo Verde pelo regime ditatorial instaurado em 28 de Maio de 1926.
Já em criança, Elina Guimarães havia revelado um sentido de igualdade e de justiça social que a levaria mais tarde para o movimento feminista. Com apenas oito anos de idade, ao folhear uma revista ficou intrigada com a luta das sufragistas aí noticiada. Como não podia perguntar à sua mãe que a aconselharia a preocupar-se apenas com as brincadeiras «próprias das meninas», esperou que o seu pai chegasse, tendo-se estabelecido entre pai e filha o diálogo que reproduzimos. «Pai: Elas são muito corajosas, querem que as mulheres tenham os direitos de trabalhar e de estudar como os homens.» Elina: «Então as meninas não estudam como os meninos?». Pai: «Não costumam estudar mas tu, se quiseres, estudas.» Elina: «Quero. Para depois ser como elas.»6 E foi uma valorosa e destacada feminista!
O episódio que se relata de seguida salienta bem este espírito indomável, quando o respeito, a igualdade e a dignidade eram postos em causa e vilipendiados. Muito jovem ainda, Elina Guimarães recusou recitar um pequeno poema a ela dedicado, de Júlio Dantas, amigo da família Guimarães, pelo facto de este, intitulando-se “A minha Boneca”, ter um pendor marcadamente misógino, como atesta a estrofe seguinte:
Só uma coisa me contrista
Quando lhe vou dar lição
Diz que quer ser sufragista
E andar de saia-calção.7
Anos depois, vai ser um artigo despudoradamente sexista do mesmo Júlio Dantas, intitulado «O Terceiro Sexo», em que este se referia sarcasticamente às mulheres que estudavam e pensavam, que a vai fazer emergir para o feminismo. É digna de antologia a sua resposta no jornal Vida Académica, a este senhor que, em 1922, no seu estupidificante texto de acentuado fervor machista intitulado «A Arte de Amar» tratava insultuosamente as mulheres: «não há felicidade no casamento quando a mulher não reconhece a superioridade do marido».
Mas, Elina Guimarães viria a reconhecer no marido um ser humano igual e de grande valor. Casou em 1928 com o seu colega Adelino da Palma Carlos (1905-1992),8 de quem teve dois filhos, Antero e Guilherme, e a quem e referiu nos seguintes termos: «Tenho boas recordações do dia do casamento. Até choveu, como é da praxe. O Adelino é uma pessoa que admiro muito, pelo seu valor intelectual. Não é machista, porque se fosse eu não tinha casado com ele».9 É de salientar que Elina Guimarães exigiu usar o nome de solteira.
A luta contra as múltiplas discriminações das mulheres fizeram com que Elina Guimarães denunciasse sempre as injustiças como a ausência de direito de voto, os salários miseráveis, o baixo nível educacional e, já no regime ditatorial instaurado em 1926, continuasse essa denúncia, acrescida então de outras discriminações como a extinção da coeducação, a violação do direito das mulheres ao trabalho em sectores em que existisse desemprego masculino, a proibição do divórcio para o casamento católico, entre muitas outras contra as quais se bateu. Quando em 1928, com 23 anos apenas, no seu discurso de abertura do II Congresso Feminista promovido pelo CNMP, sublinhou: «O que queremos nós para a mulher? Muito simplesmente isto: o pleno desenvolvimento da sua personalidade. Que criança ela seja instruída, que adulta ela possa exercer a sua actividade de harmonia com as suas aptidões sem que o ensino lhe seja negado ou o seu campo de acção cerceado apenas porque é mulher. E queremos também que o seu esforço seja reconhecido e recompensado como merece»10. Ao ter defendido o papel emancipatório da educação das mulheres, foi identificada pela Ditadura como elemento perigoso. Mas nunca desistiu, participando sempre na luta pela restauração da democracia: em 1945, filiou-se no MUD (Movimento de Unidade Democrática), movimento social apartidário que congregava antifascistas de diversas ideologias; em 1969 participou no Congresso Republicano e Democrático de Aveiro e, em 1973, no Congresso da Oposição Democrática, integrando a sua comissão nacional. Após a Revolução de 25 de Abril de 1974 assumiu a presidência da Liga de Direitos Cívicos da Mulher e foi membro de honra da Federação Internacional das Mulheres (FDIM). Celebra a Constituição da República Portuguesa de 1976, saída da Revolução de Abril, e referiu-se à reforma do Código Civil de 1978 como «a grande viragem na história da mulher portuguesa».11
Foi também na imprensa, em jornais e revistas nacionais e estrangeiros como Alma Feminina (órgão do CNMP de que foi directora entre 1929 e 1930, no período em que Adelaide Cabete partiu para Angola), Análise Social, Diário de Lisboa, Diário de Notícias, Gazeta da Ordem dos Advogados, Gazeta da Relação de Lisboa, La Française, Le Droit des Femmes, A Luta, Máxima, Modas e Bordados (ao longo de vinte anos e com Maria Lamas na direcção), A Nossa Escola, O Rebate (diário do Partido Republicano Português), Seara Nova entre outros, que Elina Guimarães esgrimiu a bandeira do feminismo, da defesa dos direitos das trabalhadoras, da formação cívica das mulheres e da denúncia do carácter discriminatório das leis.
Defensora de uma perspectiva internacionalista, esta cidadã activa e implicada na emancipação das mulheres e na luta pela democracia integrou também várias organizações feministas internacionais como International Council of Women, International Alliance for Women’s Suffrage, International Federation of University Women, Fédération Internationale des Femmes Diplomées en Droit e Phi Delta Legal Society.
Era comum vê-la pelas ruas da Baixa e do Chiado frequentando não só as livrarias Portugal, Bertrand e Sá da Costa como também, os cafés Nicola e a Brasileira, onde se realizavam diversas tertúlias.
Grande leitora e apreciadora de música, hábitos recebidos de seu pai e que transmitiria aos dois filhos, deixou-nos um espólio fantástico em diversas áreas.
Elina Guimarães proclamou sempre a importância do feminismo, tendo sido considerada uma «defensora incansável dos direitos das mulheres desde os anos vinte até aos nossos dias»12. Foi condecorada em 1985, seis anos antes do seu falecimento a 24 de Junho de 1991 em Lisboa, com a Ordem da Liberdade pelo Presidente da República, General Ramalho Eanes.
Homenagem mais que justa da Democracia a esta cidadã exemplar, que desde tenra idade se bateu pelos ideias mais nobres da Igualdade, da Liberdade, da Paz, da Justiça Social e do Feminismo.
Texto de Manuela Góis